É tudo semiótica
- Grupo IEP
- 27 de abr. de 2018
- 5 min de leitura
Atualizado: 4 de mai. de 2018
November 09, 2017| Bruno Pompeu*
Um dia, ainda pulando as primeiras ondas do mar da semiótica – tendo Charles Peirce por deus, Lucia Santaella por santa e Clotilde Perez por sacerdote –, aprendi que, para se haver com as questões do signo, devemos desenvolver três capacidades fundamentais. E hoje, com o desafio de explorar em um texto simples os desafios enfrentados na sala de aula, rodo, rodo e volto ao mesmo lugar, giro, giro e retorno ao princípio, divago, devaneio e me vejo novamente onde tudo começou.
Este era para ser um texto simples, não-acadêmico, embora o assunto central seja essencialmente circunscrito à academia. Não era para ser um texto teórico, embora não se possa confrontar os dilemas complexos da contemporaneidade sem as armas duras que a teoria nos dá. É, enfim, um texto de semiótica, sendo portanto inevitavelmente acadêmico e teórico, mas que busca trazer à esfera mais ampla, com uma liberdade quase irresponsável, uma possível relação entre o que determinam os estudiosos dos signos e o que enfrentamos operários do ensino, entre o que se estuda no plano das teorias da linguagem e o que se pratica nas salas de aula dos cursos de publicidade de hoje.
Microcosmos metonímico da sociedade atual, a sala de aula reproduz, a seu modo, e na esfera do ensino e da educação, os dilemas e os desafios da contemporaneidade. O que o mundo vive na sua esfera macro – impasses, angústias, expectativas, encantamentos, promessas –, professor e estudante experimentam juntos no seu contexto específico cotidiano. Os efeitos da contemporaneidade na sociedade são sentidos na sala de aula, de modo que, se a semiótica tem sido atualmente cada vez mais necessária ao e requisitada pelo mercado da publicidade, isso não pode ser sem razão.
A primeira capacidade demandada de quem queira desenvolver uma análise semiótica é a contemplativa: “alongar-se na demora do sensível”, como diz Santaella, dar ao signo o tempo necessário para a sua plena manifestação. Só que nada hoje em dia estimula ou favorece essa postura sensível e contemplativa. Estamos cada vez menos disponíveis ao mundo, aos signos, com câmeras celulares acopladas a telefones celulares sempre a postos para registrar em megapixels o que os olhos não têm tempo de ver. E uma (velha) opinião formada sobre tudo para substituir o processo denso e estritamente humano da análise e da interpretação. Só que não existe compreensão ou entendimento – no sentido profundo das palavras – que possam ser certeiros que não partam de uma contemplação. Os julgamentos, as sínteses e as noções, base para toda e qualquer atividade publicitária, só podem ser adequadas, pertinentes e relevantes se primeiro ultrapassarem esse estágio contemplativo.

A segunda capacidade a ser desenvolvida e praticada é a de distinguir: contextualizar, localizar no tempo e no espaço o signo, o estímulo ou o fenômeno. E novamente temos aí algo que precisa ser de fato estimulado, algo que cada vez mais requer esforço, dada a atual falta de familiaridade com tal competência. Enxergamos cada vez menos as relações que existem entre os fatos, consideramos cada vez menos os impactos do contexto do signo na sua produção de sentido. Dizendo de outra maneira: hoje em dia, por mais que se diga valorizar a transdisciplinaridade, por mais que se saiba da condição complexa em que vivemos, o que mais se faz é isolar o fenômeno, mais uma vez comprometendo sua compreensão. Da mesma forma, nenhum produto, marca ou campanha publicitária podem ser desenvolvidos sem que se considere o cenário vigente, sem que se pense no público, sem que se leve em conta as condições gerais.
Por fim, a terceira capacidade, a de generalizar - reconhecer as categorias a que o signo pertence. E daí surgem as questões das referências, do repertório e da cultura. Conhecer os códigos, a história, as escolas e os estilos; estar a par das regras, das leis, dos parâmetros e das convenções que moldam e determinam os sentidos. Em um mundo cada vez mais individualizado, em que as escolhas e os critérios se dão cada vez mais pela lógica dos algoritmos, em que os processos analíticos são entregues sem cerimônia à tecnologia, generalizar, interpretar e compreender são atividades que de fato devem ser estimuladas, preservadas e - por que não dizer - ensinadas.
É nas salas de aula de hoje que se sente com mais evidência a não-familiaridade dos estudantes, futuros publicitários, com essas três capacidades. E tudo, no fim das contas, se resume a isso. O açodamento das análises incompletas, o despropósito das estratégias mal pensadas, a nebulosidade na forma de encarar os conceitos, a inabilidade com os métodos e as técnicas, tudo, de uma forma ou de outra, passa pela linguagem, tem a ver com semiótica - e pode ser revisto segundo as três capacidades mencionadas acima.
Por isso é que eu acredito - e tenho tentado agir pedagogicamente nesse sentido - que os desafios de hoje, pensando especificamente no ensino da publicidade, por mais complexos que sejam, por menos simples de se solucionar que se revelem, podem ser enfrentados com o desenvolvimento dessas três capacidades básicas. É desligar o celular - não por convicções bobas ou por princípios ideológicos sem sentido, mas simplesmente para tapar esse ralo contemporâneo da percepção humana, por onde escoam todas as nossas possibilidades de entendimento. É ampliar as discussões, sempre, até onde seja possível, transcendendo campos e épocas, procurando fazer ver que nenhum texto, nenhuma ação, nenhuma estratégia existem por si ou isoladamente, dão certo ou dão errado apenas pela sua constituição, mas pelo que se tem ao redor, ao seu entorno, no seu contexto. É voltar à teoria, se apegar novamente ao pensamento mais abstrato, resgatar a base acadêmica que, diferente do que se tem hoje nos seus aparentes substitutos tecnológicos, conta exclusivamente com o que temos de mais precioso - e insubstituível -: o pensamento.
Não é deixar de fora ou condenar a tecnologia. É não encará-la como alternativa às capacidades essencialmente humanas - de sentir, de agir e de pensar. Não é recusar o futuro e simplesmente achar que tudo no passado era melhor. É entender que os avanços existem, que os tempos mudam e que tudo se transforma, mas que nada disso pode significar a nossa atrofia cognitiva, a amputação radical da linguagem.
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* Bruno Pompeu é Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (PPGCOM-USP) com a tese “Talento, significado e sensibilidade: epistemologia e currículo da semiopublicidade”, publicitário formado pela Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), professor de semiótica do Istituto Europeo di Design (IED-SP). Interessado nas questões contemporâneas sobre o ensino da publicidade, sobretudo no que se refere às discussões sobre a epistemologia da publicidade, aos currículos dos cursos de publicidade e ao próprio ensino da linguagem, da língua portuguesa e da redação publicitária. Sócio-fundador da Casa Semio e membro do Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo (GESC3). E-mail: brupompeu@gmail.com
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